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Não Conte a Ninguém de Harlan Coben


Sinopse: Há oito anos, enquanto comemoravam o aniversário de seu primeiro beijo, o Dr. David Beck e sua esposa, Elizabeth, sofreram um terrível ataque. Ele foi golpeado e caiu no lago, inconsciente. Ela foi raptada e brutalmente assassinada por um serial killer. O caso volta à tona quando a polícia encontra dois corpos enterrados perto do local do crime, junto com o taco de beisebol usado para nocautear David. Ao mesmo tempo, o médico recebe um misterioso e-mail, que, aparentemente, só pode ter siso enviado por sua esposa. Esses novos fatos fazem ressurgir inúmeras perguntas sem resposta: Como David conseguiu sair do lago? Elizabeth está viva? E, se estiver, de quem era o corpo enterrado oito anos antes? Por que ela demorou tanto para entrar em contato com o marido?


PARECIA UM SUSSURRO SOMBRIO AO VENTO. Ou talvez um frio na espinha. Alguma coisa. Uma canção etérea que apenas Elizabeth e eu podíamos ouvir. Uma tensão no ar. Alguma premonição. Existem desgraças que quase esperamos
na vida – o que aconteceu com meus pais, por exemplo – e existem momentos sombrios, momentos de súbita violência, que mudam tudo. Havia a minha vida antes da tragédia. Existe a minha vida agora. As duas têm dolorosamente pouco
em comum. Elizabeth mantinha-se calada durante o passeio ao local de nosso primeiro beijo, mas aquilo não era incomum. Mesmo quando menina, ela possuía esse traço de melancolia. Ficava quieta e mergulhava em uma contemplação ou em
um medo profundo, eu nunca sabia qual dos dois. Talvez fosse parte do mistério, acredito, mas pela primeira vez pude sentir o abismo entre nós. Nosso relacionamento havia resistido a muitas barreiras. Eu me perguntava se ele conseguiria
sobreviver à verdade. Ou melhor, às mentiras não contadas. O ar-condicionado do carro zunia. O dia estava quente e úmido. Um clima típico de agosto. Cruzamos a Ponte Milford, na altura do Parque Delaware Water Gap, e fomos recepcionados na Pensilvânia por um amistoso cobrador de pedágio. Dezesseis quilômetros adiante, vi numa pedra um aviso que dizia: LAGO
CHARMAINE – PROPRIEDADE PARTICULAR. Entrei na estrada de terra. Os pneus quicavam no chão, levantando poeira como um estouro de cavalo árabes. Elizabeth desligou o rádio. Pelo canto do olho, percebi que estava examinando
meu perfil. Dois cervos mordiscavam algumas folhas à nossa direita. Eles pararam, olharam para nós, viram que éramos inofensivos e voltaram a comer. Continuei dirigindo até que o lago surgiu à nossa frente. O sol despedia-se
de nós, tingindo o céu de púrpura e laranja. As copas das árvores pareciam estar pegando fogo.
– Não acredito que vamos continuar fazendo isso – falei.
– Foi você quem começou.
– Sim, quando tinha 12 anos.
Elizabeth deu um sorriso. Não costumava sorrir, mas, quando o fazia, nossa!,
atingia em cheio meu coração.
– É romântico – insistiu ela.
– É brega.
Adoro romantismo.
– Você adora uma breguice.
– E você só pensa em sexo.
– Que nada! No fundo, sou um romântico – brinquei.
Ela riu e segurou minha mão.
– Vamos, seu romântico, está ficando tarde. Lago Charmaine. Meu avô havia inventado esse nome, o que aborrecera
minha avó. Ela queria que o lago tivesse o nome dela. Seu nome era Bertha. Lago Bertha. Vovô nem ligava. Ponto para ele.
Há uns 50 anos, o lago Charmaine tinha sido uma colônia de férias para meninos ricos. O proprietário falira, de modo que vovô comprou barato o lago e todo o terreno em volta. Ele recuperou a casa do diretor da colônia de férias, mas
demoliu quase todas as construções em frente ao lago. Dentro da mata, onde ninguém mais ia, deixou as cabanas dos meninos caírem aos pedaços. Minha irmã Linda e eu costumávamos explorá-las, em busca de velhos tesouros escondidos
em suas ruínas, brincando de esconde-esconde e fugindo do bicho-papão que, com certeza, estava nos espreitando. Elizabeth raramente se juntava a nós. Ela gostava de saber onde tudo estava. Brincar de esconder a assustava.
Quando saltamos do carro, ouvi os fantasmas. Um monte deles, rodopiando e brigando pela minha atenção. O de meu pai venceu. O silêncio era total, mas eu jurava que conseguia ouvir os gritos de alegria de papai ao mergulhar do
píer, os joelhos comprimidos contra o tórax, o riso quase de um louco, a pancada na água – quase um maremoto aos olhos de seu único filho homem. Papai gostava de mergulhar perto da balsa onde mamãe tomava banho de sol. Ela
reclamava, mas mal conseguia disfarçar o sorriso. Pisquei, e as imagens sumiram. Mas me lembrei de como o riso, o grito e a
pancada na água vibravam e ecoavam na quietude de nosso lago e me perguntei se reverberações e ecos como aqueles chegam a morrer totalmente, se em algum ponto da mata os gritos alegres de meu pai ainda ricocheteavam tranquilamente
nas árvores. Pensamento idiota, mas fazer o quê? Lembranças machucam. As boas, mais ainda. – Está tudo bem, Beck? – perguntou Elizabeth.
Virei-me para ela:
– Vamos dar umazinha, né?
– Pervertido.
Ela começou a percorrer a trilha, a cabeça erguida, as costas eretas. Observei-a por um segundo, lembrando-me da primeira vez que vira aquele andar. Eu tinha 7 anos e descia a Goodhart Road em minha bicicleta – aquela com o selim alongado e o decalque do Batman. A estrada era íngreme e ampla, perfeita para um piloto de carro de corrida. Eu descia a ladeira sem segurar o guidão, com toda a segurança e coragem de que uma criança de 7 anos é capaz. O vento jogava meu cabelo para trás e fazia meus olhos se encherem de lágrimas. Vi o caminhão de mudança diante da velha casa dos Ruskins, virei e, pela primeira vez, vi minha Elizabeth, andando com a coluna perfeitamente ereta, já aos 7 anos com uma elegância incomum, com sapatos Mary Jane, uma pulseira artesanal e muitas sardas. Encontramo-nos duas semanas depois na turma de segunda série da professora Sobel e, daquele momento em diante – por favor, não riam –, nos tornamo almas gêmeas. Os adultos achavam nosso relacionamento ao mesmo tempo bonitinho e preju dicial – nossa cumplicidade se transformando em afeição
adolescente e depois, no ensino médio, num namoro não tão inocente assim. Todos, principalmente Elizabeth, achavam que nos separaríamos quando amadurecêssemos. Nós também. Ambos éramos jovens brilhantes, ótimos alunos, mantendo a razão mesmo diante de um amor irracional. Sabíamos quais eram nossas chances. Mas eis que agora, aos 25 anos de idade, com sete meses de casamento, estávamos de volta ao local onde, aos 12 anos, compartilhamos nosso primeiro beijo.
Uma breguice, eu sei. Abrimos caminho por entre os galhos e através da espessa umidade. O cheiro de pinho impregnava o ar. Transpusemos o capim alto. Mosquitos e outros insetos zuniam à nossa volta. Árvores projetavam longas sombras que poderiam ser interpretadas como bem se entendesse, assim como o formato das nuvens ou um teste de Rorschach.
Saímos da trilha e abrimos caminho pelo mato mais denso. Elizabeth foi na frente. Segui dois passos atrás, o que, pensando bem, era um gesto quase simbólico. Sempre acreditei que nada poderia nos separar – afinal, nossa história
não tinha provado isso? –, mas agora eu conseguia sentir como nunca que a culpa a impelia para longe. Minha culpa.
Mais adiante, Elizabeth dobrou à direita, na altura da grande rocha semifálica, e ali, do lado direito, erguia-se nossa árvore. Nossas iniciais estavam gravadas no tronco...
Livro disponível no Saraiva por R$ 17,80

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