Sinopse: Na manhã de seu quinto aniversário de casamento, Amy, a linda e inteligente esposa de Nick Dunne, desaparece de sua casa às margens do Rio Mississippi. Aparentemente trata-se de um crime violento, e passagens do diário de Amy revelam uma garota perfeccionista que seria capaz de levar qualquer um ao limite. Pressionado pela polícia e pela opinião pública – e também pelos ferozmente amorosos pais de Amy –, Nick desfia uma série interminável de mentiras, meias verdades e comportamentos inapropriados. Sim, ele parece estranhamente evasivo, e sem dúvida amargo, mas seria um assassino? Com sua irmã gêmea Margo a seu lado, Nick afirma inocência. O problema é: se não foi Nick, onde está Amy? E por que todas as pistas apontam para ele?
Trecho:
Parte Um – Rapaz perde garota
Quando penso em minha esposa, penso sempre em sua cabeça. No for-mato dela, para começar. Na primeira vez em que a vi, foi a parte de trás da cabeça que eu vi, e havia algo adorável nela, em seus ângulos. Como um reluzente grão de milho duro ou um fóssil no leito de um rio. Era o que os vitorianos chamariam de uma cabeça belamente formada. Dava para imaginar o crânio com bastante facilidade.
Eu reconheceria sua cabeça em qualquer lugar. E o que havia dentro dela. Também penso nisso: sua mente. Seu cérebro, todas aquelas espirais, e seus pensamentos disparando por essas espirais como centopéias rápidas e frenéticas. Como uma criança, eu me imagino abrindo seu crânio, desenrolando seu cérebro e vasculhando- o, tentando capturar e fixar com alfinete seus pensamentos.
No que você está pensando, Amy?A pergunta que eu fiz com maior frequência durante nosso casamento, embora não em voz alta, não à pessoa que poderia responder. Suponho que essas indagações pairem como nuvens negras acima de todos os casamentos: No que você está pensando? Como está se sentindo? Quem é você? O que fizemos um ao outro? O que iremos fazer? Meus olhos se abriram exatamente às seis da manhã.
Não houve bater de cílios como asas, nenhuma piscadela suave em direção à consciência. O despertar foi mecânico. Um assustador abrir de pálpebras de boneco de ventríloquo: o mundo é negro, e então, hora do show! 6-0-0, dizia o relógio — na minha cara, a primeira coisa que vi. 6-0-0.
Foi uma sensação diferente. Raras vezes acordei em um horário tão redondo. Sou um homem de levantares quebrados: 8h43, 11h51, 9h26. Minha vida não tinha alarmes. Naquele exato momento, 6-0-0, o sol se ergueu acima da silhueta dos carvalhos, revelando todo o deus raivoso de verão que havia nele. Seu reflexo cruzou o rio na direção de nossa casa, um comprido dedo apontado para mim através das leves cortinas do nosso quarto.
Acusando: Você foi visto. Você será visto. Fiquei enrolando na cama, que era nossa cama de Nova York em nossa casa nova, que ainda chamávamos de casa nova, embora já estivéssemos de volta havia dois anos.
É uma casa alugada bem na beira do rio Mississippi, uma casa que grita Novo-Rico Suburbano, o tipo de lugar a que eu aspirava quando criança, lá do meu lado da cidade com casas com andares em diferentes níveis e carpetes felpudos. O tipo de casa que é de imediato familiar.
Uma casa genericamente imponente e nada desafiadora, nova, nova, a nova casa que minha esposa iria detestar — e detestou. “Devo deixar minha alma do lado de fora antes de entrar?” Foi sua primeira frase ao chegar. Tínhamos um acordo: Amy exigiu que alugássemos em vez de comprar um imóvel em minha pequena cidade natal em Missouri, com sua firme esperança de que não ficássemos presos aqui por muito tempo.
Mas as únicas casas para alugar estavam reunidas naquele condomínio falido: uma cidade-fantasma em miniatura composta por mansões detonadas pela recessão, com preço reduzido, de propriedade dos bancos. Um bairro que foi fechado antes mesmo de abrir. Era um acordo, mas Amy não via aquilo assim, de modo algum. Para ela, era um capricho punitivo de minha parte, um egoísta dedo na ferida.
Eu a estava arrastando, como um homem das cavernas, para uma cidade que ela evitara agressivamente, e a obrigaria a viver no tipo de casa da qual costumava debochar. Suponho que não seja um acordo se apenas um dos dois vê dessa forma, mas nossos acordos eram sempre assim. Um de nós sempre estava com raiva. Normalmente Amy. Não me culpe por essa injustiça específica, Amy. A Injustiça do Missouri.
Culpe a economia, culpe o azar, culpe meus pais, culpe seus pais, culpe a internet, culpe as pessoas que usam a internet. Eu era escritor. Um escritor que escrevia sobre TV, filmes e livros. Na época em que as pessoas liam coisas em papel, na época em que alguém se importava com que o eu pensava.
Eu chegara a Nova York no final dos anos noventa, o último suspiro dos dias de glória, embora ninguém soubesse disso naquele tempo. Nova York estava abarrotada de escritores, escritores de verdade, porque havia revistas, revistas de verdade, muitas delas.
Isso quando a internet ainda era um animalzinho exótico mantido na periferia do mundo editorial — jogue um biscoitinho para ele, veja como dança com sua coleirinha, ah, que bonitinho, ele decididamente não vai nos matar no meio da noite.
Pense só nisto: uma época em que garotos recém-formados podiam ir para Nova York e ser pagos para escrever. Não tínhamos ideia de que estávamos iniciando carreiras que desapareceriam em uma década. Eu tive um emprego durante onze anos, e então deixei de ter, rápido assim. Por todo o país, revistas começaram a fechar, sucumbindo a uma súbita infecção produzida pela economia detonada.
Os escritores (meu tipo de escritores: aspirantes a romancistas, pensadores reflexivos, pessoas cujos cérebros não funcionam rápido o bastante para blogar, linkar e tuitar, basicamente falastrões velhos e teimosos) já eram.
Assim como chapeleiros femininos ou fabricantes de chibatas, nosso tempo chegara ao fim. Três semanas após eu ter sido demitido, Amy perdeu o emprego também, se é que era um emprego. (Agora posso sentir Amy olhando por sobre meu ombro, sorrindo com ironia do tempo que eu passei discutindo minha carreira, meu infortúnio, e de como descartei sua experiência em uma frase. Isso, ela lhe diria, é típico.
A cara do Nick, ela diria. Era um bordão dela: A cara do Nick fazer... e o que quer se seguisse, o que quer fosse a minha cara era ruim.) Dois adultos desempregados, passamos semanas vagando por nossa casa no Brooklyn de meias e pijamas, ignorando o futuro, espalhando correspondência não aberta por mesas e sofás, tomando sorvete às dez da manhã e tirando longos cochilos vespertinos.
Então, um dia, o telefone tocou. Era minha irmã gêmea na linha. Margo voltara para nossa cidade natal após a própria demissão em Nova York um ano antes — a garota está um passo à frente de mim em tudo, até na falta de sorte. Era Margo, ligando da boa e velha North Carthage, Missouri, da casa onde crescemos, e enquanto eu escutava sua voz, eu a vi aos dez anos, com uma cabeleira escura e vestindo macaquinho, sentada no cais dos fundos da casa dos nossos avós, seu corpo curvado como um travesseiro velho, suas pernas magricelas balançando na água, olhando o rio correr sobre pés brancos como peixes, muito concentrada, sempre incrivelmente contida, mesmo quando criança.
A voz de Go era calorosa e rascante mesmo para dar esta notícia desagradável: nossa indômita mãe estava morrendo. Nosso pai já estava quase lá — sua mente (cruel), seu coração (miserável), ambos funestos enquanto ele vagava rumo ao grande cinza do além. Mas parecia que nossa mãe ia partir antes dele. Uns seis meses, talvez um ano, era o que lhe restava. Estava claro que Go fora encontrar o médico sozinha, fizera anotações detalhadas em sua caligrafia desleixada e estava lacrimosa enquanto tentava decifrar o que havia escrito. Datas e doses.
— Ah, merda, não tenho ideia do que é isso. Um nove? Faria sentido? — disse ela, e eu interrompi. Ali estava uma tarefa, um objetivo, apresentado na palma da mão de minha irmã como uma ameixa. Quase chorei de alívio.
— Eu vou voltar, Go. Vou voltar para casa. Você não deve fazer tudo isso sozinha.
Ela não acreditou em mim. Eu podia ouvi-la respirando do outro lado da linha.
— Estou falando sério, Go. Por que não? Não há nada aqui.
Um suspiro longo.
— E Amy?
Eu não havia parado para pensar nisso. Simplesmente supus que poderia embrulhar minha esposa nova-iorquina com seus interesses nova-iorquinos, seu orgulho nova-iorquino, afastá-la de seus pais nova-iorquinos — deixar para trás a frenética e excitante terra do futuro que é Manhattan — e transplantá-la para uma cidadezinha junto ao rio em Missouri, e tudo ficaria bem. Eu ainda não havia entendido quão tolo, quão otimista, quão, sim, a cara do Nickera pensar isso. A infelicidade a que isso iria levar.
— Amy ficará bem. Amy...
Era nesse ponto que eu deveria ter dito “Amy amaa mamãe”. Mas eu não podia dizer a Go que Amy amava nossa mãe, porque depois de todo aquele tempo Amy ainda mal conhecia nossa mãe. Os poucos encontros haviam deixado ambas perplexas.
Amy passava os dias seguintes dissecando as conversas — “E o que ela quis dizer com...” —, como se minha mãe fosse alguma antiga camponesa tribal chegando da tundra com uma braçada de carne de iaque crua e alguns botões para fazer escambo, tentando conseguir de Amy algo que não estava sendo oferecido.
Amy não fez questão de conhecer minha família, não quis visitar o lugar onde eu nascera e ainda assim, por alguma razão, achei que voltar a morar na minha cidade seria uma boa ideia. Meu hálito matinal esquentou o travesseiro, e eu mudei o assunto na minha mente.
Hoje não era dia de se arrepender ou de se lamentar, era dia de fazer. Dava para ouvir, vindo do térreo, a volta de um som havia muito perdido: Amy preparando o café da manhã. Batendo armários de madeira (rump-tump!), chacoalhando recipientes de lata e vidro (ging-ring!), arrastando e escolhendo uma coleção de potes de metal e panelas de ferro (rush-shush!).
Uma orquestra culinária se afinando, tilintando vigorosamente rumo ao desfecho, uma forma de bolo rolando pelo piso, batendo na parede com um som de címbalos.
Algo impressionante estava sendo criado, provavelmente um crepe, porque crepes são especiais, e hoje Amy iria querer preparar algo especial.
Estávamos fazendo cinco anos de casados. Fui descalço até a beira da escada e fiquei escutando, brincando com os dedos dos pés no grosso carpete que ia de parede a parede e que Amy detestava por princípio, enquanto tentava decidir se estava pronto para me juntar à minha esposa. Amy estava na cozinha, alheia à minha hesitação. Cantarolava algo melancólico e familiar. Eu me esforcei para descobrir o que era — uma canção folclórica? Uma cantiga de ninar? — e então me dei conta de que era a música tema de M*A*S*H. Suicídio é indolor. Desci as escadas. Fiquei parado na soleira da porta, observando minha esposa. Seus cabelos amarelo-manteiga estavam presos, o rabo de cavalo balançando alegremente como uma corda de pular, e ela chupava distraída a ponta de um dedo queimado, cantarolando. Ela cantarolava para si mesma porque era uma destruidora de letras sem igual.
Quando estávamos começando a namorar, uma canção do Genesis tocou no rádio: “She seems to have an invisible touch, yeah”. E em vez disso Amy cantou: “She takes my hat and puts it on the top shelf”.
Quando perguntei a ela por que achava que suas letras eram remotas, possível, vagamente corretas, ela me disse que sempre achara que a mulher na canção realmente amava o homem porque ela colocava o chapéu dele na prateleira de cima.
Eu então soube que gostava dela, gostava dela de verdade, daquela garota com uma explicação para tudo. É um tanto perturbador recordar uma lembrança calorosa e sentir-se profundamente frio. Amy espiou o crepe chiando na frigideira e lambeu algo do pulso. Parecia triunfante, a típica mulher casada. Se eu a tomasse nos braços, sentiria cheiro de frutas vermelhas e açúcar de confeiteiro.
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